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sexta-feira, 30 de março de 2012

As facas do Pasmado


Marcelo Lins
Em sua obra O Matuto (1878), o romancista cearense Franklin Távora faz uma descrição da pequena vila do Pasmado duas léguas ao norte de Igarassu, na estrada de Goiana:


No que Pasmado se parece com todos os velhos povos, é em ter casas esburacadas; entulhos e matos pelo meio das ruas; aqui uma baixa, ali um barreiro, onde, de inverno, coaxam os sapos dia e noite, respondendo à vozeria desentoada dos seus semelhantes que moram nas moitas formadas por dentro dos largos, sem licença nem proibição da municipalidade. A rua mais pública e principal da povoação é aquela por onde corre a própria estrada. Perto ficam os olhos-d’água nativa onde os moradores vão prover-se da de que precisam, quando não aparam, por sua comodidade, como costumam, em potes e gamelas a que cai das biqueiras da casa durante as chuvas. O certo é que, ou indo busca-la nas fontes ou aparando-a na porta da casa, não curtem sede os moradores de Pasmado dias e noites, ainda de verão, como curte a pobreza desta esplendida e orgulhosa cidade — primeira capital da América do Sul.[1]
Na primeira metade do século XIX, o pequeno povoado  do Pasmado era nacionalmente conhecido pela habilidade dos seus artesões na confecção de artefatos de ferro. Segundo documento citado por Pereira da Costa, funcionavam no Pasmado seis oficinas de ferreiros, quatro de ourives, duas de latoeiros, caldeireiros e, mesmo, uma fundição onde se produzia variados trabalhos em metal: bridas, fechaduras, tesouras e facas.
Estas últimas, no entanto, as principais responsáveis pela fama alcançada pelo Pasmado nos quatro cantos do Império, pela têmpera e delicado trabalho artístico. Reputadas como as melhores entre as melhores do país e tão conhecidas a ponto de se tornarem sinônimo de faca, como encontramos no Vocabulário Pernambucano  - faca de ponta, afamada pela sua têmpera e bom trabalho artístico, com várias referencias de citação:
E triando com admirável ligeireza uma bendita filha do Pasmado ia levar a convicção ao espírito duro do credor (O Clamor Público, n. 42 de 1845).
E por segurança me pus afastado, temendo as bicudas que vem de Pasmado (O vapor dos Traficantes, n. 260 de 1860) [2]
As facas mais simples custavam cerca de 400 reis, já as mais trabalhadas com fino acabamento artístico e prateadas podiam chegar a 2$560 reis.
Dos afamados artesões e mesmo da outrora vila do Pasmado, restou tão somente a pequena igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem é testemunha de um passado distante que não volta mais. Diante da igreja solitária em meio ao canavial, já em ruínas, às margens da BR-101, só a ficção de Franklin Távora pode trazer os ecos do antigo povoado e suas bigornas.
Quem atravessa Pasmado pela primeira vez, tem a ilusão de que todas as arapongas da mata próxima estão ali a soltar seus estrídulos acentos. Mas logo vê homens tisnados batendo com o martelo sobre a bigorna, foles assopradores, carvões ardentes e flamejantes. Então a ilusão muda. O que parece é que todas as forjas de Vulcano foram transportadas para aquele imenso laboratório de instrumentos mais destruidores do que conservadores da vida e do sossego alheio.
Neste particular, o de ser largo e opulento mercado de armas malfazejas, talvez Pasmado só possa contar em todo o império brasileiro uma rival — a côrte do sobredito império, na qual a navalha do capoeira disputa a primazia, em gênero, numero e caso, à faca do matuto do norte. 




[1] TÁVORA, Franklin. O matuto : crônica pernambucana. Rio de Janeiro : Garnier, 1902. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br.
[2] Pereira da Costa, F.A. Vocabulário Pernambucano. Recife: Gov. do Estado de Pernambuco, Secretaria de
Educação e Cultura, 1976.






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