Marcelo Lins
Em sua obra
O Matuto (1878), o romancista cearense Franklin Távora faz uma descrição
da pequena vila do Pasmado duas léguas ao norte de Igarassu, na estrada de
Goiana:
No que Pasmado se parece com todos os velhos povos, é em
ter casas esburacadas; entulhos e matos pelo meio das ruas; aqui uma baixa, ali
um barreiro, onde, de inverno, coaxam os sapos dia e noite, respondendo à
vozeria desentoada dos seus semelhantes que moram nas moitas formadas por
dentro dos largos, sem licença nem proibição da municipalidade. A rua mais
pública e principal da povoação é aquela por onde corre a própria estrada.
Perto ficam os olhos-d’água
nativa onde os moradores vão prover-se da de que precisam, quando não aparam,
por sua comodidade, como costumam, em potes e gamelas a que cai das biqueiras
da casa durante as chuvas. O certo é que, ou indo busca-la nas fontes ou
aparando-a na porta da casa, não curtem sede os moradores de Pasmado dias e
noites, ainda de verão, como curte a pobreza desta esplendida e orgulhosa
cidade — primeira capital da América do Sul.[1]
Na primeira
metade do século XIX, o pequeno povoado do Pasmado era nacionalmente conhecido pela
habilidade dos seus artesões na confecção de artefatos de ferro. Segundo
documento citado por Pereira da Costa, funcionavam no Pasmado seis oficinas de
ferreiros, quatro de ourives, duas de latoeiros, caldeireiros e, mesmo, uma
fundição onde se produzia variados trabalhos em metal: bridas, fechaduras, tesouras
e facas.
Estas
últimas, no entanto, as principais responsáveis pela fama alcançada pelo
Pasmado nos quatro cantos do Império, pela têmpera e delicado trabalho
artístico. Reputadas como as melhores entre as melhores do país e tão
conhecidas a ponto de se tornarem sinônimo de faca, como encontramos no Vocabulário
Pernambucano - faca de ponta,
afamada pela sua têmpera e bom trabalho artístico, com várias referencias
de citação:
E triando com admirável ligeireza uma bendita filha do Pasmado ia levar
a convicção ao espírito duro do credor (O Clamor Público, n. 42 de
1845).
E por segurança me pus afastado, temendo as bicudas que vem de Pasmado (O vapor
dos Traficantes, n. 260 de 1860) [2]
As facas
mais simples custavam cerca de 400 reis, já as mais trabalhadas com fino
acabamento artístico e prateadas podiam chegar a 2$560 reis.
Dos
afamados artesões e mesmo da outrora vila do Pasmado, restou tão somente a
pequena igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem é testemunha de um passado
distante que não volta mais. Diante da igreja solitária em meio ao canavial, já
em ruínas, às margens da BR-101, só a ficção de Franklin Távora pode trazer os
ecos do antigo povoado e suas bigornas.
Quem atravessa Pasmado pela primeira vez, tem a ilusão de que todas as
arapongas da mata próxima estão ali a soltar seus estrídulos acentos. Mas logo
vê homens tisnados batendo com o martelo sobre a bigorna, foles assopradores,
carvões ardentes e flamejantes. Então a ilusão muda. O que parece é que todas
as forjas de Vulcano foram transportadas para aquele imenso laboratório de
instrumentos mais destruidores do que conservadores da vida e do sossego
alheio.
Neste particular, o de ser largo e opulento mercado de armas malfazejas,
talvez Pasmado só possa contar em todo o império brasileiro uma rival — a côrte
do sobredito império, na qual a navalha do capoeira disputa a primazia, em
gênero, numero e caso, à faca do matuto do norte.
[1]
TÁVORA, Franklin. O matuto : crônica pernambucana. Rio de Janeiro : Garnier,
1902. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br.
[2]
Pereira da Costa, F.A. Vocabulário
Pernambucano. Recife: Gov. do Estado de Pernambuco, Secretaria de
Educação e Cultura, 1976.