Aproveitando estes dias que
antecedem as festas carnavalescas, achei interessante trazer os relatos de
alguns viajantes estrangeiros do século XIX, e suas impressões sobre as festas
momescas.
O primeiro deles, o comerciante e
industrial francês Louis François de Tollenare-Gramez, simplesmente L. F. de
Tollenare, como é mais conhecido. Nascido
na cidade de Nantes, em 4 de abril de 1780 e falecido na mesma cidade a 25
setembro 1853, Tollenare chegou ao porto
do Recife em 13 de janeiro de 1816. As guerras napoleônicas haviam afetado
substancialmente seus negócios e dificultado a importação de algodão das
ex-colônias inglesas da América do Norte. Sua vinda ao Brasil tinha como
objetivo buscar novos fornecedores de algodão, como parte de uma sociedade estabelecida
com o conde du Fou, François-Marie-Bonaventure
du Fou (1765-1833), prefeito da cidade de Nantes e seu primo pelo lado materno.
Jogos durante o entrudo no Rio de Janeiro, Earle, Augustus, 1793-1838.
aquarela, 21.6 x 34 cm. (c.1822)
Aqueles dias de carnaval de 1817 surge na pena de Tollenare, não tão somente
como dias de festas, mas dias de uma liberalidade estranha e, até mesmo,
constrangedora para os padrões bretões do comerciante francês. O carnaval ou entrudo não admite outros
folguedos senão o de assaltos recíprocos com bolas de cera cheias d'água, com
seringas, laranjas e ás vezes cousas piores. [2]
Durante os dias de festa, as
regras cotidianas da boa conduta ficavam alteradas. A sociedade Luso-brasileira
extremamente ciosa da intimidade do lar, abria suas portas para as brincadeiras
do entrudo. Ao entrar em uma casa, mesmo
estranha, pode-se estar certo de ser recebido pelas senhoras com um copo d'água
no rosto ; é permitido retaliar ; a guerra é assaz animada e presta- se a
alguns “tours de mains”. Também cai por terra a rígida clausura imposta às
mulheres lusitanas, motivo de chacota para os vizinhos hispânicos da península Ibérica e da América Latina,
sempre a galhofar do ciúme extremado dos portugueses, e que não passou desapercebido
pela pena do comerciante francês:
A licença destes dias me deu acesso á casa
de algumas vizinhas, da classe média, as quais até então apenas lobrigara.
Foi-me permitido oferecer-lhes uma merenda
na sua própria casa.
Mandei-se buscar doces, frutos e vinho na venda
próxima.
A mãe estava presente.
A conversação não era muito espirituosa ;
mas, alegre, um pouco livre e versou sempre sobre o amor e o casamento.
Raros momentos de trégua,
interrompidos:
por garrafas d’água que nos despejavam pela
cabeça, na camisa e — sinto um pouco de vergonha em dizê-lo — até
nas calças. As senhoras vos seguram, vós vos debateis, e neste conflito,
algumas vezes mais que bizarro, é difícil não esquecer um pouco que nos achamos
em boa sociedade.
Situação embaraçosa em que a vítima da brincadeira se não
adequadamente vestida acaba-se quase por
ficar despido.
Se as brincadeiras do entrudo
praticadas entre a boa sociedade da
classe média desagradavam de tal forma
os padrões de conduta do viajante europeu, a ponto de que Não desejaria ver, nem minha irmã nem minha esposa, em meio das
recreações do entrudo. O que pensar do carnaval de rua praticado pela
população mais humilde e dos escravos O
que se passa nas ruas, entre os escravos e a baixa plebe, é ainda mais violento
: depois das laranjinhas vêm as garrafas, as imundícies e as cacetadas.
Bibliografia
-
ANTOLOGIA
do carnaval do Recife. Organizado por Mário Souto Maior e Leonardo Dantas
Silva. Estudo introdutório de Leonardo Dantas Silva, “Elementos para história
social do carnaval do Recife” (p. XI - XCVII). Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana,
1991. XCIX, 406 p. il. (Obras de consulta,
n. 11). Inclui bibliografia e pentagramas musicais.
-
SILVA,
Leonardo Dantas. Carnaval do Recife.
Prefácio de José Ramos Tinhorão. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife,
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000. 410 p. il. Inclui bibliografia.
-
TOLLENARE, L. F. de. Notas dominicais. Tradução de Alfredo de Carvalho.
Apresentação José Antônio Gonsalves de Mello. 2. ed. Recife: SEC, Departamento
de Cultura, 1978. 272 p. il. (Coleção
pernambucana; 1ª fase, v. 16).
-
BOXER, Charles Ralph. Women in Iberian expansion overseas,
1415-1815: some facts, fancies and personalities. New York: Oxford University Press, 1975.
[1]
OLIVEIRA LIMA, Manuel de. “Prefácio”; in TOLLENARE, L. F. de. Notas dominicais. Tradução de Alfredo de
Carvalho. Apresentação José Antônio Gonsalves de Mello. 2. ed. Recife: SEC,
Departamento de Cultura, 1978. 272 p.
il. (Coleção pernambucana; 1ª fase, v. 16).
[2]
TOLLENARE, L. F. de. Notas dominicais. Tradução de Alfredo de Carvalho. Apresentação
José Antônio Gonsalves de Mello. 2. ed. Recife: SEC, Departamento de Cultura,
1978. 272 p. il. (Coleção pernambucana;
1ª fase, v. 16); p. 128-129.